O
nascimento da clínica enquanto domínio da experiência e da racionalidade médica
é, certamente, um fenômeno histórico e, portanto, datado. O final do século
XVIII e o início do século XIX irão oferecer o cenário científico, social,
político, necessário à constituição da medicina moderna e sua clínica.
A
passagem gradual a essa nova experiência teve como seu primeiro momento a
reforma pedagógica da medicina, realizada sob os auspícios da Revolução
Francesa, momento em que essa profissão assumiu a função do controle higiênico
e social.
Essa
reforma acarretou a reorganização do domínio hospitalar, espaço onde doença e
morte sempre ofereceram grandes lições à ciência. O hospital tornou-se, enfim,
uma escola. A clínica ganhou além da já consolidada observação junto ao leito
do paciente, um segundo momento fundamental, o do ensino, quando o médico
catedrático retomava a história geral das doenças, suas causas, seus
prognósticos, suas indicações vitais, etc, levando a medicina a uma nova
disposição do saber, a uma apropriação sistematizada e científica de seu objeto.
A formação do método clínico esteve ligada, portanto, ao direcionamento da
observação médica para o campo dos signos e sintomas. Os diferentes signos
(pulso, respiração, pressão, etc) designam os sintomas. O sintoma é o indicador
soberano da doença, a lei de sua aparição, o seu significante. A aparição da
doença em seus sintomas possibilitou uma transparência do ser patológico a uma
linguagem descritiva. A partir da investigação clínica, pautada em uma análise
exaustiva dos sintomas, o ser da doença tornou-se “inteiramente enunciável em
sua verdade”. A clínica teve de produzir, dessa forma, além do estudo sucessivo
e coletivo de casos, a reflexão e a sensibilidade em direção à organização de
uma nosologia. Tornou-se, assim, uma maneira de dispor a verdade já
constituída, desvelando-a sistematicamente.
No
entanto, a grande mudança epistemológica, possibilitada pelo progresso da
observação, pelo cuidado em desenvolver a experiência, pela fidelidade àquilo
que os dados sensíveis pudessem revelar, pelo abandono dos grandes sistemas e
teorias e pela assunção, enfim, de uma perspectiva cada vez mais científica,
adveio da descoberta da anatomia patológica. Autópsias e dissecações começaram
a tomar parte fundamental dos procedimentos técnicos da medicina. Bichat foi um
dos principais responsáveis pelas mudanças trazidas pela constituição da
experiência anátomo-clínica na medicina.
Prevenir
e tratar as doenças passaram a ser procedimentos mais seguros e rigorosos, pois
a intervenção passou a se dar sobre os fatores que geravam as patologias. Dessa
forma, o método anátomo-clínico permitiu a consolidação da medicina científica,
distante cada vez mais da metafísica. A clínica é muito mais do que uma prática
médica pautada no exame do indivíduo ou no estudo de casos; ela é um campo de
produção científica do conhecimento e de elaboração de uma práxis, com claros
reflexos na cultura moderna.
A
psiquiatria foi uma especialidade concebida dentro dos parâmetros de
desenvolvimento da medicina enquanto ciência e profissão. Ela adquiriu
reconhecimento como disciplina autônoma no século XVIII, com os trabalhos
realizados por grandes nosólogos e psiquiatras, como Pinel, Tuke, Rush, que
realizaram as primeiras classificações das hoje chamadas “doenças mentais”,
influenciados que estavam pelo pensamento classificatório típico do empirismo,
perspectiva dominante na ciência de então. A psiquiatria teve seu solo mais
fértil na França, ganhando espaço nos Hospitais Gerais como a Salpêtrière e o
Bicêtre, em Paris, quando da grande reforma hospitalar. Impregnada do espírito
da época, tornou-se uma clínica de casos, corroborando para definir o
indivíduo, definitivamente, como objeto científico.
A
psiquiatria e a psicopatologia, enquanto domínios correlatos, sempre estiveram
divididas entre duas tendências básicas, que ainda hoje as dominam: a
perspectiva organicista, que busca as causas da loucura em algum elemento
orgânico, sejam fluidos corporais, problemas cerebrais, disfunções
neurológicas, componentes neuroquímicos; e a perspectiva psicológica, que busca
a explicação da loucura, quer na vida moral, quer na vida de relações, ou seja,
nas desordens emocionais, psíquicas do indivíduo em sua relação com o ambiente.
Tanto uma perspectiva, quanto a outra, postulam, de maneira geral, a existência
de uma “natureza a priori” (seja orgânica ou psíquica, racional) que determina
a “doença” e que, portanto, deve ser desvelada. Concebe-se, assim, uma razão “a
priori” que determina as ações humanas.
A
psiquiatria de nossos dias evoluiu bastante; podemos citar as conquistas no
campo do tratamento da loucura, como o processo de desospitalização (Reforma
Psiquiátrica), ou ainda, as pesquisas em torno dos psicofármacos. No entanto,
ela ainda se mantém enredada na dicotomia inicial (orgânico/psicológico) e na
perspectiva do racionalismo que sempre a fundamentou. Dessa forma, podemos
ressaltar que a psiquiatria estacionou no modelo médico do século XVIII,
permanecendo na ótica da “clínica dos casos” e na ênfase classificatória.
A
psicologia clínica é herdeira direta da psiquiatria. No século XVIII, as idéias
psicológicas começaram a germinar no seio da psiquiatria, num primeiro momento
sob influência do Romantismo (Victor Hugo, Stendhal, Baudelaire, etc), que
ressaltava o valor da individualidade, ao implementar o culto do “eu”,
imprimindo uma perspectiva subjetivista à área que tinha, até então, uma ótica
puramente mecanicista e organicista na compreensão dos “distúrbios nervosos”.
Depois, o encontro da medicina com a filosofia, como ocorreu na obra de Maine de
Biran (1766-1824) e Victor Cousin (1792-1967), propiciou uma visão mais
unitária e psicossomática do homem, tendo clara influência na interpretação
mais psicológica da psicopatologia.
Essas e
outras variáveis contribuirão na crescente importância da perspectiva
psicológica no seio da psiquiatria, resultando, no final do século XIX, na
consolidação de uma área específica: a psicologia clínica. A nova área tem uma
relação direta com a psicopatologia, na medida em que esta sempre foi o
carro-chefe da psiquiatria. A psicologia clínica lhe deve, assim, muito de sua
conformação, ainda que procure dela se diferenciar.
Poderíamos
reiterar a posição explicitada por Pedinielli (1994) de que entre as duas
existe uma diferença de “natureza”: “ a psicopatologia é um domínio, já a
psicologia clínica é um método ou uma “demarche” . Existiria, assim, uma
psicologia clínica aplicada à psicopatologia, mas também aplicada a outros
domínios (grupos, instituições, ao social).

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