terça-feira, 26 de setembro de 2017

Uma Breve História da Clínica e da Psicologia Clínica




O nascimento da clínica enquanto domínio da experiência e da racionalidade médica é, certamente, um fenômeno histórico e, portanto, datado. O final do século XVIII e o início do século XIX irão oferecer o cenário científico, social, político, necessário à constituição da medicina moderna e sua clínica.
A passagem gradual a essa nova experiência teve como seu primeiro momento a reforma pedagógica da medicina, realizada sob os auspícios da Revolução Francesa, momento em que essa profissão assumiu a função do controle higiênico e social.
Essa reforma acarretou a reorganização do domínio hospitalar, espaço onde doença e morte sempre ofereceram grandes lições à ciência. O hospital tornou-se, enfim, uma escola. A clínica ganhou além da já consolidada observação junto ao leito do paciente, um segundo momento fundamental, o do ensino, quando o médico catedrático retomava a história geral das doenças, suas causas, seus prognósticos, suas indicações vitais, etc, levando a medicina a uma nova disposição do saber, a uma apropriação sistematizada e científica de seu objeto. A formação do método clínico esteve ligada, portanto, ao direcionamento da observação médica para o campo dos signos e sintomas. Os diferentes signos (pulso, respiração, pressão, etc) designam os sintomas. O sintoma é o indicador soberano da doença, a lei de sua aparição, o seu significante. A aparição da doença em seus sintomas possibilitou uma transparência do ser patológico a uma linguagem descritiva. A partir da investigação clínica, pautada em uma análise exaustiva dos sintomas, o ser da doença tornou-se “inteiramente enunciável em sua verdade”. A clínica teve de produzir, dessa forma, além do estudo sucessivo e coletivo de casos, a reflexão e a sensibilidade em direção à organização de uma nosologia. Tornou-se, assim, uma maneira de dispor a verdade já constituída, desvelando-a sistematicamente.
No entanto, a grande mudança epistemológica, possibilitada pelo progresso da observação, pelo cuidado em desenvolver a experiência, pela fidelidade àquilo que os dados sensíveis pudessem revelar, pelo abandono dos grandes sistemas e teorias e pela assunção, enfim, de uma perspectiva cada vez mais científica, adveio da descoberta da anatomia patológica. Autópsias e dissecações começaram a tomar parte fundamental dos procedimentos técnicos da medicina. Bichat foi um dos principais responsáveis pelas mudanças trazidas pela constituição da experiência anátomo-clínica na medicina.
Prevenir e tratar as doenças passaram a ser procedimentos mais seguros e rigorosos, pois a intervenção passou a se dar sobre os fatores que geravam as patologias. Dessa forma, o método anátomo-clínico permitiu a consolidação da medicina científica, distante cada vez mais da metafísica. A clínica é muito mais do que uma prática médica pautada no exame do indivíduo ou no estudo de casos; ela é um campo de produção científica do conhecimento e de elaboração de uma práxis, com claros reflexos na cultura moderna.
A psiquiatria foi uma especialidade concebida dentro dos parâmetros de desenvolvimento da medicina enquanto ciência e profissão. Ela adquiriu reconhecimento como disciplina autônoma no século XVIII, com os trabalhos realizados por grandes nosólogos e psiquiatras, como Pinel, Tuke, Rush, que realizaram as primeiras classificações das hoje chamadas “doenças mentais”, influenciados que estavam pelo pensamento classificatório típico do empirismo, perspectiva dominante na ciência de então. A psiquiatria teve seu solo mais fértil na França, ganhando espaço nos Hospitais Gerais como a Salpêtrière e o Bicêtre, em Paris, quando da grande reforma hospitalar. Impregnada do espírito da época, tornou-se uma clínica de casos, corroborando para definir o indivíduo, definitivamente, como objeto científico.
A psiquiatria e a psicopatologia, enquanto domínios correlatos, sempre estiveram divididas entre duas tendências básicas, que ainda hoje as dominam: a perspectiva organicista, que busca as causas da loucura em algum elemento orgânico, sejam fluidos corporais, problemas cerebrais, disfunções neurológicas, componentes neuroquímicos; e a perspectiva psicológica, que busca a explicação da loucura, quer na vida moral, quer na vida de relações, ou seja, nas desordens emocionais, psíquicas do indivíduo em sua relação com o ambiente. Tanto uma perspectiva, quanto a outra, postulam, de maneira geral, a existência de uma “natureza a priori” (seja orgânica ou psíquica, racional) que determina a “doença” e que, portanto, deve ser desvelada. Concebe-se, assim, uma razão “a priori” que determina as ações humanas.
A psiquiatria de nossos dias evoluiu bastante; podemos citar as conquistas no campo do tratamento da loucura, como o processo de desospitalização (Reforma Psiquiátrica), ou ainda, as pesquisas em torno dos psicofármacos. No entanto, ela ainda se mantém enredada na dicotomia inicial (orgânico/psicológico) e na perspectiva do racionalismo que sempre a fundamentou. Dessa forma, podemos ressaltar que a psiquiatria estacionou no modelo médico do século XVIII, permanecendo na ótica da “clínica dos casos” e na ênfase classificatória.
A psicologia clínica é herdeira direta da psiquiatria. No século XVIII, as idéias psicológicas começaram a germinar no seio da psiquiatria, num primeiro momento sob influência do Romantismo (Victor Hugo, Stendhal, Baudelaire, etc), que ressaltava o valor da individualidade, ao implementar o culto do “eu”, imprimindo uma perspectiva subjetivista à área que tinha, até então, uma ótica puramente mecanicista e organicista na compreensão dos “distúrbios nervosos”. Depois, o encontro da medicina com a filosofia, como ocorreu na obra de Maine de Biran (1766-1824) e Victor Cousin (1792-1967), propiciou uma visão mais unitária e psicossomática do homem, tendo clara influência na interpretação mais psicológica da psicopatologia.
Essas e outras variáveis contribuirão na crescente importância da perspectiva psicológica no seio da psiquiatria, resultando, no final do século XIX, na consolidação de uma área específica: a psicologia clínica. A nova área tem uma relação direta com a psicopatologia, na medida em que esta sempre foi o carro-chefe da psiquiatria. A psicologia clínica lhe deve, assim, muito de sua conformação, ainda que procure dela se diferenciar.

Poderíamos reiterar a posição explicitada por Pedinielli (1994) de que entre as duas existe uma diferença de “natureza”: “ a psicopatologia é um domínio, já a psicologia clínica é um método ou uma “demarche” . Existiria, assim, uma psicologia clínica aplicada à psicopatologia, mas também aplicada a outros domínios (grupos, instituições, ao social).

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